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Dor óssea oncológica
18/02/2015
Publicado por: Luis Fernando Johnston Costa


Introdução

A dor pode ser controlada de forma satisfatória em 80% a 90% dos casos com o emprego da escada analgésica da OMS; entretanto, existe um percentual significativo de doentes que vão apresentar o que denominamos “dor de difícil controle”. Essas dores refratárias a terapêutica farmacológica podem ser decorrentes de um elevado estímulo nociceptivo como, por exemplo, uma dor óssea com grande invasão tumoral. Podem ainda ser causadas pelo desenvolvimento de tolerância aos opioides associada à impossibilidade de aumento de dose devido aos efeitos secundários, ou ainda, a características especiais da dor que complicam o seu controle como: dor neuropática associada, dor tipo “breakthrough” e nas que predominam o componente emocional.

A maioria dos doentes portadores de metástases ósseas experimenta dor crônica de moderada a grande intensidade, hipercalcemia, anemia, aumento a susceptibilidade a infecção, fraturas patológicas, compressão e instabilidade da medula espinal com diminuição da mobilidade, que juntos comprometem a qualidade de vida e a sobrevida desses doentes. Neste contexto, a dor óssea relacionada a esse crescimento metastático é considerada como a situação de mais de difícil controle relacionada ao câncer. Associa-se à expansão da lesão neoplásica, compressão, tração ou laceração das estruturas nervosas, como as fibras sensoriais e autonômicas presentes no periósteo, no osso mineralizado e na medula óssea gerando dor isquêmica, inflamatória e neuropática periférica.

Apesar do osso não ser considerado órgão vital, os tumores de mama, próstata, tireoide, rim e pulmão apresentam uma forte predileção para ocorrência de metástase simultânea para múltiplos ossos com importante comprometimento. Os tumores ósseos malignos, como o mieloma múltiplo, osteossarcoma, condrossarcoma e sarcoma de Ewing de forma semelhante apresentam crescimento rápido e agressivo e igualmente induzindo dor óssea.

A dor se desenvolve em poucas semanas ou meses. Caracteriza-se inicialmente como dor localizada, intermitente que melhora com a movimentação; com o avançar das lesões torna-se constante e com caráter mecânico, acentua-se com a carga e movimentação e melhora com o repouso do seguimento comprometido. Ao exame, constata-se dor a compressão ou percussão das estruturas ósseas. Associado a este quadro podemos ainda identificar uma dor tipo “breakthrough”, que constitui o problema mais grave e desafiador no tratamento dos doentes com tumor ósseo maligno primário e metastático, pois quando presente pode ser altamente incapacitante para os doentes comprometendo sua qualidade de vida. Portanto, a dor óssea de difícil controle pode resultar em considerável morbidade e complexas demandas de recursos para viabilizar os cuidados necessários. Recentes avanços no diagnóstico, mediante técnicas de imagem e bioquímicas, têm favorecido o diagnóstico e o tratamento precoces.


Dados epidemiológicos

Na população norte-americana as metástases ósseas afetam mais de 400.000 indivíduos no ano, sendo que 350.000 morrem em consequência dessas metástases. O osso é o local de metástase em 95% dos doentes com mieloma múltiplo, 75% dos doentes com câncer de mama e próstata e 30 a 40% dos doentes com câncer de pulmão. No Brasil, em particular, o câncer de mama e de próstata são de importância clínica devido à sua elevada prevalência. Estimativas do INCA para 2010 registram 52.350 e 49240 novos casos respectivamente da doença. Dados epidemiológicos e clínicos mais recentemente levantados por pesquisadores chineses demonstraram que tumores ósseos metastáticos ocorreram frequentemente em doentes com mais de 41 anos, numa proporção de 2,2:1 entre homens e mulheres, se originaram do pulmão (21,8%), próstata (13,1%), mama (7,4%), fígado (6,4%), entretanto em 24% dos casos o tumor primário era desconhecido. Vértebras (47,7%), pelve (18,2%), fêmur (15,4%) e costela (12,6%) foram os locais mais comuns de metástases, porém múltiplas metástases ocorreram em 20% dos casos. Os principais sintomas foram dor óssea (53,3%), fraturas patológicas (10,3%), disfunção (4,9%) e paraplegia (2,1%)7. No entanto, outros autores demonstraram uma incidência mais elevada, analisando necropsias de doentes com câncer detectando que 70% deles apresentavam evidências de doença óssea metastática.


Mecanismos de dor nas metástases ósseas

O tecido ósseo se remodela continuamente por uma ação coordenada e equilibrada dos osteoblastos, encarregados de depositar a matriz extracelular, e dos osteoclastos, responsáveis pela reabsorção da matriz mineralizada. A chegada de células tumorais altera esse equilíbrio, favorecendo um aumento da reabsorção sobre a formação, produzindo as consequentes lesões osteolíticas. Na sua grande maioria (80,7%) as metástases ósseas são osteolíticas, sendo assim mediada por fatores derivados das células tumorais que atuam diretamente no microambiente celular e também indiretamente ativando a diferenciação e ativação dos osteoclastos mediante a liberação de fatores osteogênicos, como ocorre caracteristicamente no mieloma múltiplo. As metástases osteoblásticas, que ocorrem com menor frequência, são típicas do câncer de próstata.

A lesão celular induzida pela osteólise, mediada pelos osteoclastos, inicia uma complexa cascata de eventos bioquímicos e celulares envolvidos na gênese da dor inflamatória e neurogênica. Eles incluem a liberação de mediadores hiperalgésicos que aumentam a excitabilidade da terminação nervosa por diminuírem o limiar do potencial de ação no neurônio sensorial primário, preparando assim, o nociceptor para estímulos ativadores subsequentes. Este fenômeno é denominado hiperalgesia e reflete em parte a presença de mediadores hiperalgésicos, como prostaglandinas, bradicinina, endotelinas, histamina e substância P que estimulam as terminações nervosas; em outra parte reflete as modificações na cinética dos canais iônicos, principalmente o canal de sódio voltagem dependente Nav1.810 e receptores vaniloides (TRPV1), que desempenham um papel crítico no desenvolvimento e manutenção da dor no câncer ósseo.

Portanto, a ocorrência de dor óssea refratária a terapêutica parece ser conduzida simultaneamente por mecanismos inflamatórios, neuropáticos e tumorogênico. A avidez pelo tecido ósseo como local de metástase se explica, por um lado, pela irrigação medular própria e, por outro lado, pela grande variedade de tipos celulares que armazenam, envolvidas na hiperalgesia inflamatória como citocinas (IL 1-,IL-6,TNF-α), quimiocinas e vários fatores de crescimento como fator de crescimento transformador beta (TGF-β) e o fator de crescimento neural (NGF), importante na regulação de múltiplos processos celulares.



Tratamento da dor óssea

A eficácia do tratamento da dor óssea passa por uma avaliação clínica criteriosa e por uma aproximação multimodal onde se avaliam cautelosamente os benefícios e os riscos de cada modalidade de tratamento, levando em conta a extensão e natureza da enfermidade metastática e principalmente o tratamento antitumoral da doença primária. O bom senso deve ser utilizado nas definições do objetivo do tratamento, dos métodos e das abordagens e isto sempre requer uma equipe multidisciplinar.

1. Cirurgia ortopédica

A cirurgia ortopédica paliativa visa o alívio da dor do paciente, a melhora de função e a facilitação dos cuidados médicos e de enfermagem, independentemente do prognóstico e da sobrevida do paciente, uma vez que o não tratamento restringe o paciente ao leito, favorecendo o aparecimento de complicações inerentes desta condição. A técnica cirúrgica irá variar, dependendo da localização da fratura, da extensão da destruição óssea e das condições gerais do paciente. As fraturas patológicas da coluna devido a metástases têm absoluta indicação de cirurgia. Entretanto, em doentes com metástases e fraturas por compressão, sem envolvimento neurológico, a dor intratável geralmente responde à radioterapia e ao uso de coletes. Já as fraturas envolvendo a cabeça e o colo do fêmur, a ressecção com a substituição por uma endoprótese não convencional metálica é o procedimento de escolha. A maioria das lesões requer radioterapia posterior à cirurgia. A pobre qualidade do osso proximal e distal à fratura não é, de forma nenhuma, contraindicação do procedimento.

2.Tratamento farmacológico

Deve iniciar o programa de tratamento, podendo-se combinar três grupos farmacológicos: analgésicos não opioides, analgésicos opioides e fármacos adjuvantes ou coanalgésicos.

§  Associação com AINES (ação sinérgica dos AINES e dos opioides): os AINES são os agentes terapêuticos mais utilizados, sendo prescritos para o controle da dor e do edema. Na escolha de um AINES clássico ou um coxibe (AINES altamente seletivos para COX-2) deve ser priorizado a história clínica dos doentes e os seus efeitos colaterais devem ser criteriosamente monitorados. Geralmente são bem tolerados em curto prazo, mas preferencialmente deve-se escolher um analgésico com mecanismos adicionais sinérgicos, como é o caso da dipirona, que ativa a via Larginina / óxido nítrico / GMP cíclico / Katp. e ao mesmo tempo interage com o sistema glutamatérgico resultando em uma analgesia inquestionável. Este fato, somado ao perfil físico-químico e as diferentes formas farmacêuticas disponíveis, tornam seu uso mais tolerável do que os AINES ácidos no que diz respeito à toxicidade gástrica com uso prolongado.


§  Fármacos adjuvantes: apesar de não serem intrinsecamente analgésicos, muitas vezes são utilizados pelas suas propriedades de produzir alívio, potenciar a analgesia dos AINEs e opioides e diminuir os efeitos adversos dos mesmos. São de várias classes: antidepressivos, anticonvulsivantes, tranquilizantes maiores, ansiolíticos, corticosteroides e um grupo miscelânea no qual se podem incluir: anti-histamínico, relaxantes musculares, bisfosfonatos e calcitonina. O uso de corticosteroides é uma terapia adjuvante bem estabelecida para o controle da dor de metástase óssea generalizadas e seu uso diário pode ser útil não só para analgesia, mas também pelos seus efeitos benéficos sobre a respiração, apetite, náuseas e humor. São utilizados em doses baixas de manutenção associadas a doses maiores em bolus nas exacerbações da dor. A dexametasona e prednisona são os corticosteroides de eleição por via oral, e a metilpredonisolona ou triancinolona por via peridural.



§  Calcitonina: alguns estudos têm demonstrado o efeito benéfico da calcitonina (injetável e spray nasal) no controle da dor óssea refratária a terapêutica, pois reduzem a reabsorção óssea. No entanto, a evidência limitada atualmente disponível não sustenta o uso de calcitonina para controlar a dor óssea.


§  Bisfosfonatos: têm sido utilizados em 30%-50% dos casos para reduzir a morbidade esquelética em mieloma múltiplo e metástase óssea de uma ampla variedade de tumores sólidos. Possuem uma ação eficaz na diminuição rápida da hipercalcemia de origem tumoral, e sua ação antirreabsortiva, que induz apoptose e diminuição na capacidade invasiva de células tumorais, é a responsável pelos seus efeitos analgésicos sobre a dor óssea secundária à remodelação óssea progressiva. Também tem sido descrito efeitos antiangiogênicos por sua capacidade de ligação e bloqueio das integrinas do entotélio vascular que também participa do processo. Estes efeitos são potencializados com a combinação de dexametasona no mieloma múltiplo e com o tamoxifeno e paclitaxel no câncer de mama. Os bisfosfonatos têm demonstrado um benefício paliativo nesse cenário e, em particular, o ácido zoledrônico  o único bisfosfonato que trouxe benefícios para os doentes com metástase óssea secundária a uma ampla variedade de tumores sólidos pela sua maior potência antireabsortiva quando comparado com pamidronato, clodronato oral, e ibandronato. No entanto, a disfunção renal pode ocorrer ocasionalmente e, nos últimos anos tem sido descrita uma nova entidade, a osteonecrose de mandíbula, que é associada ao uso dos bisfosfonatos..


3. Radioterapia externa

A principal modalidade de tratamento das metástases ósseas é a radioterapia, sendo a indicação para o alívio da dor localizada e a manutenção da função. A radioterapia é eficaz no controle temporário da dor, assim como na diminuição ou controle local da destruição óssea. A paliação efetiva ocorre em aproximadamente 80% a 90% dos casos. A duração da resposta é variável, mas geralmente, no câncer de próstata ou mama, ela costuma ser de 9 a 12 meses. Nos sarcomas de Ewing, em que os doentes vivem, em média, um ano após o diagnóstico de metástases, a radioterapia paliativa proporciona alívio completo da dor em cerca de 55% dos doentes e 29% apresentam resposta parcial.

As principais indicações de radioterapia externa no controle da dor óssea metastática são a refratariedade da dor ao uso de opioides, o comprometimento dos ossos de sustentação (coluna, fêmur) e o risco iminente de fratura, na impossibilidade de tratamento cirúrgico prévio. Entretanto, o emprego desta modalidade é limitado às áreas próximas de estruturas nobres radiosensíveis e, quando as metástases são múltiplas e disseminadas, o emprego da irradiação do hemicorpo induz toxicidade medular em cerca de 30% dos casos e efeitos colaterais como náuseas, vômitos e diarreia em 50% dos doentes.

 

4. Terapia sistêmica com radionucleotídeos

É possível promover a irradiação direta dos locais metastáticos simultaneamente, através da administração endovenosa de um isótopo radioativo que, por suas características próprias ou carreadas por um fármaco, se localizasse seletivamente nas metástases, produzindo efeitos terapêuticos. Neste contexto se destaca o Samário-153 conjugado com EDTMP para câncer de mama e próstata, cujos efeitos analgésicos começam em média duas semanas após a administração da dose.

A terapia sistêmica com radionuclídeos é um instrumento útil para aliviar a dor óssea na doença metastática e pode ser mais eficaz quando combinado com quimioterapia e bisfosfonatos. O uso precoce diminui significativamente a morbidade e prolonga a sobrevida dos doentes, além, de diminuir a ocorrência de novas metástases ósseas. A ablação nervosa por radiofrequência (RFA) em metástases ósseas refratárias aos tratamentos convencionais tem demonstrado boa eficácia e de longa duração para o controle da dor óssea. Um possível papel da RFA, como um tratamento coadjuvante paliativo nestes casos, é sugerida por vários autores na literatura. Já a abordagem cirúrgico-analgésica feita pela ressecção de ramos nervosos frequentemente determina paralisia, incontinência urinária e fecal; contribuindo para a degradação da qualidade de vida do paciente.


Perspectivas

Estudos experimentais em modelos animais nesta última década vêm fornecendo a introspecção nos mecanismos envolvidos na dor baseados no entendimento dos fatores que determinam a dor óssea no câncer, buscando assim, terapias mais efetivas que controlem a dor, mas também reduzam o crescimento do tumor e a indução da remodelação óssea. Neste sentido, os bisfosfonatos são preferencialmente usados para o tratamento da dor óssea associados a outras terapias como a pregabalina e o denosumab (anti-RANKL), tanezumab (anti-NGF) que se encontram em fase final dos ensaios clínicos4.

Recentes pesquisas com um antagonista do receptor do fator ligante nuclear κB (antiRANKL) em portadores de mieloma múltiplo ou metástase óssea de câncer de mama, demonstraram uma acentuada redução dos eventos esqueléticos relacionados com a reabsorção óssea induzida pelo tumor (fraturas e dor óssea). Em parte isto pode ser justificado pelo papel regulador essencial que esse receptor representa na atividade dos osteoclastos. É provável que uma combinação destas terapias proporcione resultados superiores a qualquer terapia isolada.


Fonte


II Consenso Nacional de Dor Oncológica. -1. ed. -- São Paulo : EPM - Editora de Projetos


Manual de Cuidados Paliativos -  Associação Nacional de Cuidados Paliativos - 2ª edição