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Anestésicos locais e aplicações clínicas
14/11/2012
Publicado por: administrador

Texto de Daniel Machado

 

Anestésicos locais e aplicações clínicas


Os anestésicos locais são fármacos que bloqueiam de forma reversível a condução do impulso nervoso, entre eles, aqueles envolvidos com estímulos nociceptivos. Seu mecanismo de ação se baseia ao bloqueio dos canais de sódio, impedindo a despolarização neuronal, o que mantém a célula em estado de repouso. A anestesia periférica atua paralisando as terminações sensitivas periféricas ou interrompendo a transmissão da sensibilidade à dor entre terminações (nociceptores) e o encéfalo.

Estrutura Química e Mecanismo de Ação

Tipicamente, a molécula de anestésico local é constituída por três grupos: um grupo lipofílico (geralmente um anel benzeno), um grupo hidrofílico (geralmente amina terciária) e uma cadeia intermediária que incluem ligação éster ou amida. O grupo lipofílico tem como utilidade a passagem da molécula pela membrana da célula nervosa, enquanto o grupamento hidrofílico (ionizável) interage com o receptor celular. De acordo com a natureza da cadeia intermediária, os anestésicos locais podem ser classificados em agentes tipo éster (procaína, tetracaína) ou amida (lidocaína, mepivacaína, bupivacaína). A importância clínica dessa divisão está associada à duração do efeito (forma de inativação dos compostos) e ao risco de reações alérgicas. Os ésteres tem duração de efeito menor, pois são hidrolisados por enzimas encontradas de forma ampla nos tecidos e no plasma, exceto a tetracaína. Amidas sofrem metabolismo hepático, com consequente maior duração da ação. Ésteres determinam maior taxa de reações de hipersensibilidade, enquanto alergias são raras com anestésicos tipo amida. Anestésicos locais são bases orgânicas fracas, pobremente solúvel em água. Por isso, as soluções comerciais são preparadas como sais ácidos (hidrossolúvel), geralmente obtidas por adição de ácido clorídrico. Assim, apesar dos agentes serem bases fracas, as preparações farmacêuticas são levemente ácidas, com pH variando de 4,5 a 6,0. Esta acidez aumenta a estabilidade das soluções anestésicas. Uma vez injetadas nos tecidos, com pH mais alcalino (pH=7,4), há tamponamento do ácido, liberando base em forma não-ionizada, passível de ser absorvida. Quando o pH do meio não favorece essa transformação, a ação anestésica não se processa. É o que ocorre em presença de processos inflamatórios e/ou infecciosos, em que o pH tecidual extremamente baixo promove ionização da molécula, impedindo sua ação. Em meio ácido, as bases recebem íons hidrogênio e tornam-se carregadas positivamente , diminuindo sua possibilidade de atravessar membranas celulares, pois tem menor lipossolubilidade. Suplementação excessiva de doses num mesmo local determina menor resposta, pois esgota a capacidade tamponante do meio. Anestésicos locais atuam sobre os processos de geração e condução nervosa, reduzindo ou prevenindo o aumento de permeabilidade de membranas excitáveis ao sódio, fenômeno produzido por despolarização celular. O potencial de repouso da membrana neuronal é de -60 a -70 mV, sendo o interior negativo em relação ao exterior e mantido pela ação da bomba de sódio e potássio predominatemente. A excitabilidade do tecido nervoso depende da instabilidade dos gradientes iônicos através da membrana, ocorrendo a despolarização por meio de súbito influxo de sódio para dentro da célula através dos canais rápidos de sódio voltagem dependentes. Esses canais são estruturas glicoproteicas localizadas na membrana celular que funcionam como poros aquosos. Eles existem em diversas conformações, dependendo da voltagem transmembrana. Durante a despolarização da membrana, há mudança na conformação do canal e, então, o sódio passa a penetrar dez vezes mais facilmente que o potássio. Após a despolarização, o potencial transmembrana atinge cerca de +30mV, no caso do tecido nervoso, o que altera novamente a conformação do canal, que irá se fechar. Desse modo pode ser iniciada a repolarização que ocorre através do efluxo de potássio, restaurando o potencial de repouso. A ligação dos anestésicos locais aos canais de sódio depende da conformação do canal, sendo, portanto, um fenômeno voltagem dependente. A afinidade pela configuração fechada é baixa, enquanto que a conformação inativada é extremamente favorável à interação. Outra hipótese de como os anestésicos locais podem interromper a condutância ao sódio é a entrada do anestésico na parte lipídica da membrana, desorganizando e expandindo a matriz lipídica, o que obstrui os canais por contiguidade. A maioria dos anestésicos locais age tanto por interação com os canais proteicos como por expansão de membrana celular. As fibras de menor diâmetro são bloqueadas mais facilmente do que as de diâmetro maior. Já fibras mielinizadas são bloqueadas mais facilmente do que as não mielinizadas. O bloqueio segue a seguinte sequência clínica: a) Bloqueio do simpático, com vasodilatação periférica e aumento da temperatura cutânea. b) Perda da sensibilidade térmica e dolorosa. c) Perda da propiocepção. d) Perda da sensibilidade do tato e à pressão. e) Paralisia motora. Propriedades físico-químicas As propriedades físico-químicas dos anestésicos locais explicam suas características clínicas, quais sejam sua velocidade de ação (tempo de latência), potência, duração e toxicidade. Quando utilizamos um anestésicos local na clínica, são três as características que nos interessam diretamente: a) Potência: guarda relação direta com a lipossolubilidade da droga. b) Duração: guarda relação direta com o grau de ligação protéica. c) Velocidade de ação (tempo de latência): guarda relação inversa com o grau de ionização. Além destas propriedades, alguns anestésicos locais podem determinar um bloqueio diferencial das fibras sensitivas e motoras. Um exemplo é a bupivacaína que determina bloqueio sensitivo efetivo com mínimo bloqueio motor.

Farmacocinética

No local de deposição dos anestésicos locais, diferentes compartimentos competem pela droga: o tecido nervoso, a gordura, os vasos sanguíneos e linfáticos. O que resta no tecido nervoso para a ação principal é apenas uma pequena parte. Para garantir uma boa qualidade de bloqueio, duração adequada e menor toxicidade, é fundamental que se controle a absorção a partir de seu local de aplicação, o que exige cuidados especiais. Os fatores mais importantes relacionados a absorção dos anestésicos locais são: a) Local de injeção: quanto mais vascularizado for o local de aplicação do anestésico local, maior o nível plasmático esperado. b) Dose: na faixa pediátrica a lidocaína deve ser utilizada em doses de 7 a 10 mg/kg, quando utilizamos soluções sem ou com epinefrina, respectivamente; no adulto, não deve ser ultrapassado a dose de 500mg, utilizando-se sempre que possível epinefrina. No caso de bupivacaína, não eciste dose tóxica bem estabelecida. Entretanto, as doses recomendadas são de 2 a 3 mg/kg na faixa pediátrica. c) Presença de vasoconstritor: sempre que não houver contraindicação ( circulação terminal, problemas cardiovasculares graves), o vasoconstritor deve ser utilizado. A incidência de fenômenos de intoxicação é menor quando se utiliza a associação. Quanto mais vascularizado for o local da aplicação, maior será o benefício da associação. O anestésico ideal é a epinefrina que além de reduzir a velocidade de absorção, possui ação anestésica local, melhorando a qualidade do bloqueio. d) Características farmacológicas dos anestésicos locais: duas características principais influem no nível plasmático, são elas lipossolubilidade e ação vasodilatadora.

Toxicidade

Caso o anestésico local atinja outras membranas excitáveis em quantidade suficiente, seja por sobredose, absorção exagerada ou injeção intravascular, poderá também exercer sobre essas membranas uma ação estabilizadora, com repercussões clínicas importantes no sistema nervoso central e sistema cardiovascular. É importante para o uso seguro dos anestésicos locais, lembrar que: a) Quanto maior a potencia do anestésico local, maior sua toxicidade. b) O sistema nervoso central é mais sensível que o cardiovascular Os sinais e sintomas de intoxicação pelo anestésico local dependem não só da concentração plasmática, mas também da velocidade com que se estabelece essa concentração. A concentração plasmática tóxica aproximada para a lidocaíma é 8 micrograma/ml, enquanto que para a bupivacaína é de 3-4 micrograma/ml. À medida que se eleva a concentração plasmática, observam-se importantes sinais clínicos para o diagnóstico e profilaxia da intoxicação pelos anestésicos locais: formigamento de lábios e língua, zumbidos, distúrbios visuais, abalos musculares, convulsões, inconsciência, coma, parada respiratória e depressão cardiovascular. O formigamento de língua e lábios não é propriamente uma manifestação de toxicidade no sistema nervoso central, mas sim de elevados níveis de anestésico local no tecido frouxo e vascularizado da língua e dos lábios. É importante lembrar que o anestésico local é sempre um depressor da membrana celular e que, embora fenômenos excitatórios estejam presentes no quadro de intoxicação, eles traduzem sempre uma depressão do sistema nervoso. O substrato fisiopatológico da intoxicação é o predomínio da atividade excitatória no sistema nervoso, com grande consumo de oxigênio local e consequente acidose, dentro de um quadro geral de depressão. A medida terapêutica correta é devolver a oxigenação e corrigir a acidose. A hipóxia e a acidose potencializam a toxicidade dos anestésicos locais, principalmente dos agentes de longa duração. Caso não consiga ventilar o paciente e oxigenar o paciente, deve-se fazer uso de succinilcolina e proceder a ventilação efetiva. Além da ventilação e oxigenação, é muito importante que a circulação seja mantida, pois dela depende a redistribuição do anestésico local. Assim como no SNC, os efeitos tóxicos se fazem sentir também no aparelho cardiovascular, tanto sobre a força como na condução do estímulo cardíaco. Teorias demonstram que a depressão cardiovascular provocada pelos anestésicos locais possa ser decorrente de uma ação no sistema nervoso central e sua interação com o aparelho cardiovascular. A taquicardia, a hipóxia e a acidose concomitante a intoxicação pelo anestésico local, agravam o quadro de intoxicação, pois promovem mais ciclos cardíacos e fornecem mais canais inativados para a impregnação pelo anestésico. Independentemente de todo o progresso que se tenha feito no sentido de buscar um antídoto para a intoxicação por anestésicos locais, é necessário que se tenha em mente que o segredo da recuperação de um paciente que sofre um grave quadro desse tipo de intoxicação é o pronto atendimento, com medidas vigorosas de ventilação, oxigenação, suporte cardiovascular e correção da acidose. Com essas providências, poderemos tratar eficientemente aqueles que, apesar das medidas profiláticas, vieram a desenvolver graves intoxicações sistêmicas por esse importante grupo de drogas.




Fundamentos da Anestesiologia e Cirurgia Ambulatorial./ Sara Lúcia F. Cavalcante e Bruno Jucá Ribeiro [organizadores].- Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2010.